Thursday, June 2, 2016

CRÍTICA: Exodus: Deuses e Reis, de Ridley Scott

Treze séculos antes de Jesus abraçar a cruz, foi Moisés acordado por uma sarça ardente e promovido a arauto e profeta, tão divinal e eloquente nos seus actos que inspirou as religiões judaica, islâmica e cristã, previu as dez pragas do Egito e cinzelou os dez mandamentos, tendo apartado as águas do Mar Vermelho para os seus conterrâneos atravessarem para Israel, trajecto que levaria ainda 40 anos a completar e às portas da qual o seu coração não resistiu, tinha ele então 120 e ouvido a sarça há 80.
É opinião escolástica reinante de que Moisés é uma figura lendária e não real, mas Ridley Scott, quinze séculos após o Êxodo (que representa a emancipação dos escravos hebraicos do Egipto e a sua travessia até à Terra Prometida, prometida por Deus ao seu povo eleito, precisamente aquele que abandonou à escravatura durante 400 anos, por isso o que são mais 40 de jogging pelo deserto), reinterpreta o segundo capítulo do Velho Testamento como sendo facto, despojando-o de misticismo e tentando mesmo racionalizar parte das pragas, que a ciência e a arqueologia sempre andaram de candeias às avessas com a crendice das maldições. Tudo liberdades narrativas que vão ao encontro da sua afirmação de que a religião é a maior fonte do Mal e de que ser agnóstico o ajudou a encarar o guião como apenas uma história, mas que em nada enalteceu a película nem beneficiou a sua duração.
Este Moisés nunca troca a espada pelo cajado, a sarça ardente flama, mas quem fala é uma criança, sumarizam-se as dez pragas para se acotovelarem os que se deixaram dormir e o mar não é aberto ao meio, mas esvaziado para que hordas de judeus possam passar e ondas gigantes vêm repor o nível da água e afogar as tropas de Ramsés que os perseguem. Sucessor do ponderado e bonzinho Seti, contrasta o vicioso sucessor, o mimado e arrogante Ramsés, irmão adoptivo de Moisés, resgatado da margem do rio Nilo quando era bebé. Amigos até uma sacerdotisa profetizar, analisando as entranhas de um frango, a usurpação do trono de um pelo outro, Moisés é exilado (a mãe de Ramsés queria-o morto, mas não se sabe porquê e Sigourney Weaver, que a interpreta, ausenta-se do set para ir tratar do jantar e nunca mais regressa às filmagens), ao que se vêm despedir dele a mãe adoptiva (viúva de Seti) e a irmã de Moisés, para nunca mais serem vistas (também foram exiladas ou regressaram a Mênfis, é uma incógnita, para estas não houve profecia). Um ancião judeu (três ou quatro cenas para Ben Kingsley) já lhe tinha contado sobre o seu nascimento e proveniência, mas ele não acreditara, assim como não acreditava em deuses, fossem eles de que clube fossem. Entretanto, nas suas deambulações, casa-se e entretém-se durante nove anos com esposa, filho e quintal, para, devido a uma derrocada em que bate com a cabeça, passar a acreditar nas palavras de um menino de 11 anos que diz ser Deus, talvez agora se perceba também a fé dos três pastorinhos de Fátima, o que a fome e o calor fazem aos sentidos é praticamente idêntico.
Moisés é incumbido de libertar os judeus e conduzi-los a Israel e, nesta missão em prol de desconhecidos e à borla, abandona a família sem pensar duas vezes, que a razão importava antes, mas agora quem manda é a fé, que alimenta o espírito enquanto a barriga ronca e o pénis se lamenta, quantos anos sem esposa pela frente ninguém sabe, haverá prostitutas entre as escravas ou não poderá Deus transformar-se em coisa mais atraente, que crianças é mais para católicos, eles no futuro sabem de si. Moisés volta para Mênfis (não se sabe se aqueles nove anos foram passados para lá da fronteira, nem se o Egipto tinha fronteiras definidas), Ramsés rejeita o diálogo por razões financeiras (se prescindir do trabalho escravo, Moisés tem de substituí-lo por crianças da Formosa) e também não é demovido pelas operações de guerrilha para as quais Moisés treina os judeus nas horas livres da escravatura. O Deus-menino, petulante como antes, considera que o humano não está a ter sucesso e lança dez pragas sobre o Egipto: envenena o rio, enche o chão de sapos e o ar de moscas e gafanhotos, picuinhices que podiam perfeitamente ter sido evitadas se tivesse argumentado directamente com Ramsés, o que não faz, porque as crianças não educadas são más e esta não foge à regra. Assim, à décima praga, mata todas as crianças em cuja porta não foi espichado sangue de cabra, porque Ele sabe lá quais crianças são judias (o seu povo preferido), o que sabe é que, se há sangue na porta, devem ser. Morre o herdeiro de Ramsés e este, no seu sofrimento, liberta finalmente os escravos, apenas para mudar de ideias e persegui-los pouco depois, mas a maré baixa para os hebreus e volta a subir para os egípcios, só quem paga portagem tem salvo conduto. E, pronto, caminho livre e toca a andar. Nos minutos que sobram peguem lá dez mandamentos, nem se perde tempo a dizer quais são, quem não sabe leia o Tanach. 
Exodus: Deuses e Reis é um filme serviçal, mas não se percebe ao serviço de que causa. Religiosa, já se sabe que não é (após as afirmações do realizador), aventura também não, porque quem reina é o tédio. Os efeitos especiais atrasam-se tanto que mais vale começar a assistir só depois do intervalo. É um espectáculo triste, sem espiritualidade, sem amor pelos personagens e com uma mensagem convoluta que parece resumir-se a «escravizar é mau, arrepende-te ou arrependes-te». Será isto uma variação de Lincoln (2012), de Steven Spielberg? Só faltou os hebreus serem interpretados por negros... Curiosamente, falta Moisés no título, dando prevalência aos privilegiados, mas secundários. Reais ou alegóricos, os eventos são tratados com mão pesada, sem solenidade (a par de Noé, de Darren Aronofsky, do mesmo ano) ou, para não dizer mais, cuidado na descrição ou interesse nos protagonistas. Demasiado tosco para ser épico, perde-se no deserto, o que não é de estranhar de um realizador que agoniza desde 2001.
Exodus: Gods and Kings 2014

4 comments:

  1. Na Bíblia, aquilo que leva Deus a escolher Moisés é o facto deste matar um capataz que vê chicotear um escravo e de, consequentemente, fugir para o deserto em desespero. No filme, a História é revista como um apontamento cómico: ao ver o escravo ser vergastado, toda a sua intervenção se resume a perguntar porque sorri o escravo açoitado e murmurar, face à resposta de que o escravo afirma não sentir dor, qual a utilidade da punição.

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  2. O "verdadeiro" Moisés não esteve 9 anos ausente nem casou. No filme, isso acontece, mas durante o exílio de Moisés, ou seja, sem que ninguém de Mênfis tenha conhecimento. Contudo, quando Moisés regressa e o ameaça, Ramsés diz aos conselheiros que quer Moisés morto e frisa que a família dele também. Esta é uma mera declaração de intenções, que fala do espírito mesquinho de Ramsés, já que não se sabe que família se refere: Moisés não revelou que tinha casado e a madrasta e a irmã não voltam a aparecer (o que lhes terá acontecido durante 9 anos é uma incógnita). O mais cómico é que equipara Ramsés a um mafioso, a exigir a morte da família de Moisés, mas é só espalhafato inconsequente, já que acaba por não dar em nada, pois não é encontrado ninguém ligado a Moisés por sangue ou contrato.

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  3. Moisés discute com Deus tê-lo separado da família e depois não escutar as suas opiniões, mas Deus-menino rejeita essa noção, dizendo que ele veio porque quis; Deus mente com quantos dentes de leite tem, porque Moisés não queria deixar a mulher e o filho e foi Deus quem o incomodou insistentemente para que o fizesse, até este ceder. É um golpe baixo dizer, depois, «vieste porque quiseste».

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  4. Em mais uma inconsistência, Moisés perdeu tempo a treinar os hebreus para que se revoltassem pelas armas, mas Deus, impaciente, decidiu lançar as pragas em substituição, tornando uma vez mais inútil a intervenção de Moisés. Porque não falou Deus directamente com Ramsés, atormentando antes Moisés para que o fizesse em seu nome? Que qualidades apresentava Moisés para tal empreitada? E, se algumas tinha, para quê desautorizá-lo depois de esperar 400 anos?

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