Viggo Mortensen começou como figurante em A Testemunha (1985), mas a sua carreira rapidamente se propagou como fogo pela floresta do cinema independente, que fazia a transição entre os drive ins e os clubes de vídeo, sendo notado por Hollywood e alcançando o respeito e um currículo tão longo quanto invejável, apadrinhado por alguns dos nomes mais sonantes do celulóide (Sean Penn, Jane Campion, Brian DePalma, Ridley Scott, Peter Jackson, David Cronenberg, entre outros). Filho de um dinamarquês e de uma americana que se apaixonaram na Noruega, nasceu em Nova Iorque e cresceu na América do Sul, decidiu encontrar-se na Dinamarca e regressou aos Estados unidos para tornar-se escritor. Depois do sucesso de O Senhor dos Anéis, encontrou espaços cinematográficos que beneficiaram do seu poliglotismo e histórias cuja originalidade podia não ter o mesmo retorno financeiro, mas lhe permitiram alargar horizontes geográficos e profissionais.
Espanta, assim, que tenha seguido Falling – Um Homem Só (2020) com The Dead Don't Hurt, os seus dois primeiros trabalhos como realizador e argumentista, para além de protagonista, compositor e até co-produtor. Se Falling era sobre um gay em visita ao pai com lapsos de memória, mas bem recordado do seu racismo, sexismo e temperamento desagradável em geral, The Dead Don't Hurt é um western arthouse, daqueles de dar à corda para que a história avance um milímetro. Contado de forma não linear para que não se perceba logo que não tem muito para oferecer, dá a conhecer o vilão enquanto o herói enterra a esposa, apenas para voltarmos atrás e vermos como eles se conheceram e que uma interação intermédia entre vilão e esposa ainda viva justificam que o herói o mate por razões que parecem prender-se entre a justiça e a vingança, ainda que outros mereçam a mesma sina neste objecto de simplismo sem grandes redenções e o herói se mostre demasiado abstraído para conceder-lha.
Aos 65 anos, Mortensen tem o rosto tão marcado pela idade como há 20 anos atrás, e o cabelo palha pintado de cores mais robustas e penteado para a frente lá lhe vai permitindo passar por aquele limbo intemporal dos personagens maduros que ainda não atingiram a terceira idade, eternamente a cirandar o dreno sem resvalar. Com um cavalo e um chapéu que já viu melhores dias, está pronto para um qualquer personagem batido pelo tempo, mas que ainda pode bater-lhe uma vez, se a luta for justa. Infelizmente, The Dead Don't Hurt é um pedaço de lixo imoral tão vagaroso que dificulta limpar-se dessa imoralidade quando tenta, com brevidade e sem convicção, no final. Se John Wayne odiava a fase pós-heróica do western encabeçado pelos anti-heróis como os que Clint Eastwood imortalizou, nem quero imaginar o que diria deste marasmo pseudo- intelectualóide.
São mais de duas horas a narrar a história de um homem que começa a enterrar a esposa na sua quinta quando lhe contam que um certo bêbado local matou seis homens e fugiu, tendo sido mais tarde encontrado bêbado e está pronto para ser julgado. O realizador mostrou-nos que o culpado é outro, mas a sentença enforca o bêbado. O viúvo é o xerife, mas está pronto a pagar a dívida que tem ao banco e a depôr o seu crachá, só tem um cavalo para si e para o filho (afinal nem é o seu filho), ala que se faz tarde, aquelas paragens cheiram mal. Vêm as analepses, como ele conheceu a mulher em São Francisco, até a vemos em criança na véspera de perder o pai para a guerra contra os ingleses, como se apaixonaram e rumaram à terra onde a enterrou. A partir daí, fica confuso perceber porque é que ele escolheu aquele lugar tão inóspito para morar, se a casa já era dele, se já era natural dali, se já conhecia as dinâmicas de poder que governavam o lugarejo. Se assim fosse, torna-se suspeito que tenha decidido alistar-se novamente no exército só porque o salário era bom, deixando para trás a mulher que foi cobiçada pelo filho do homem rico local desde o primeiro momento, homem este cujos modos rudes e violentos apenas são reforçados pela indumentária exlusivamente preta, que neste tipo de filme a simbologia é básica e evidente.
Se o herói pouco ou nada faz para merecer sê-lo, a heroina mostra que é valente porque, depois de violada pelo bully local, em vez de meter as malas no cavalo e ir embora, decide desfazê-las e aguardar o marido que a deixou para trás em busca de um salário como soldado, mesmo depois de ter-se queixado que a primeira mulher o abandonou quando lhe fez o mesmo. O marido, que começa o filme a enterrá-la, regressa aos tempos em que a conheceu e era um errante em São Francisco (para ele o fim do mundo, e com isso bem-vindos ao título português, que nada tem a ver com o original), de onde ela também não era natal, e leva-a para a sua terra quando decidem juntar os trapos, num ermo onde ficava a casa que já tinha partilhado com a primeira mulher. Dadas as fracas perspetivas do lugar e da hospitalidade da terriola minúscula, não se entende porque é que para ali foram, ou porque é que ele para ali voltou, mas começa por ser carpinteiro, antes de ir embora como soldado e regressar como xerife, sem que tenha feito nada para vingar a mulher até já ninguém querer saber, filmando finalmente a cena como quem também não quer saber. Uma perda de tempo de ponta a ponta.
The Dead Don't Hurt 2023
CINEMA & ASSOCIADOS
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