Friday, January 3, 2025

CRÍTICA: Kraven, O Caçador, de J.C. Chandor

Consta que J. M. DeMatteis, em 1987, tinha uma ideia para uma história do Homem-Aranha mas não sabia ainda com que vilão materializá-la e que, ao folhear a Enciclopédia Marvel, calhou ler que Karven, o Caçador, um dos personagens que considerava mais estúpidos da galeria que enfrentava o disparador de teias, era russo. Estranhou, achando ter sido o escrivão da Enciclopédia a inventar esse pormenor, mas o seu gosto por Dostoyevski e outros trágicos autores russos foi o suficiente para eleger o bruto do colete adornado de juba de leão como o antagonista da sua narrativa, com motivos e um passado pormenorizado a condizer com a nacionalidade, e matando-o no final, porque Kraven já andava a perder para o Homem-Aranha há demasiado tempo para o seu sentido de honra e fanfarronice amaciarem o seu ego em mais uma derrota. Claro que ninguém morre verdadeiramente no universo do Homem-Aranha para além do Tio Ben e do Capitão Stacey e Kraven voltou do túmulo, mas isso são outros quinhentos.

Kraven, o Caçador, foi criado por Stan Lee e Steve Ditko em 1964 como um vilão recorrente para o Homem-Aranha, mas isso não interessa nada porque a Columbia Pictures não sabe o que fazer com certas propriedades cujos direitos adquiriu à Marvel e tem vindo a fazer filmes independentes do trepador de paredes com a intenção de lançar franchises, mas a perder dinheiro em todos os casos menos num, com a trilogia de Venom a provar-se lucrativa, ainda que com dividendos menores a cada entrega e o terceiro a fazer sensivelmente metade da bilheteira do primeiro. Morbius, Madame Web e Kraven o Caçador, porém, foram apostas fracassadas e a Columbia Pictures já anunciou uma pausa na produção relacionada com super-heróis.

Quanto ao personagem propriamente dito, Sergei Nikolaevich Kravinoff nada retém da sua origem nos comics para além da nacionalidade e de caçar seres humanos, agora não com o objetivo de ser coroado o melhor caçador do mundo, mas de contrabalançar os malefícios feitos pelo pai, um rei do crime russo de quem escapou ainda adolescente para viver na savana siberiana, naquela parte da Sibéria onde não neva no inverno e se pode andar sempre de T-shirt. Kraven é agora o herói, o pai dele é que tem traços da disciplina rigorosa e da natureza violenta do original, já que o Kraven desenhado tinha todo um clã composto por mulher e três filhos, todos eles empenhados em caçar o Homem-Aranha e amiúde uns aos outros, que em casa de animais todos se comportam como tal. No filme, porém, isto não é assim, a mãe de Kraven suicidou-se antes da abertura e o pai leva os filhos adolescentes a um safari em África como consolo, porque nada como matar para afugentar o estigma da morte. É aqui que o jovem Kraven se cruza com a jovem Calypso, que nos comics é uma feiticeira de voodoo psicopata nascida no Haiti de quem se torna amante, sendo ambos inimigos figadais do Homem-Aranha, mas no filme é uma advogada inglesa de descendência africana com bom sentido de justiça, se negligenciarmos que, à confissão de Kraven ser um assassino, faz vista grossa porque ele lhe garante que só mata maus. Inventada em 1980 já adulta, é rejuvenescida para o filme e não pratica feitiçaria, era a avó dela que fazia poções e lia as cartas, pela única cena em que entra também parece boa pessoa. Numa analepse, o jovem Kraven é atacado pelo leão Scar e a pequena Calypso não hesita em salvar-lhe a vida com a primeira e única poção mágica que a avó dela acabou de ofertar-lhe como se fosse a coisa mais importante do mundo, ainda os dois nem tinham sido apresentados e só anos mais tarde vindo a reencontrar-se.

Já se percebeu que entre os comics e o filme pouco há a ligá-los, critique-se o filme. Este Kraven tem um pai duro e rigoroso que quer que ele seja o seu sucessor no negócio criminoso, mas assim que o jovem se apanha na posse dos poderes da poção da avó da Calypso, tendo sobrevivido à morte pelo ataque do leão Scar e adquirindo agilidade e força através da saliva do bicho ou coisa parecida, foge de casa para as planícies siberianas onde guarda as melhores recordações da mãe que se suicidou antes do safari e por lá vive uns anos, a alimentar-se do ar e da terra (se aprendeu sobre venenos, também deve ter aprendido agricultura), antes de decidir dedicar-se à missão de matar maus, para equilibrar o mundo das maldades perpetradas pelo pai. Cabe mencionar que tem um meio-irmão sensivelmente da mesma idade que o acusa de tê-lo abandonado mas com quem continua a dar-se bem, o dito é sensível, um certo pai prefere o adjectivo cobarde, ele é bom a imitar vozes, o que não serve para nada durante o filme inteiro, mas no final é uma piscadela de olho, ele torna-se o Camaleão, a-ha, é como nos comics, o irmão do Kraven é o Camaleão, lá são os dois vilões, aqui é só um, é parecido sem ser igual.

Kraven é tão bom caçador que a Sony Pictures disponibilizou no youtube os primeiros oito minutos da longa-metragem nas vésperas da estreia, tal era a confiança na coisa, e aí podemos assistir integralmente a uma das suas missões, o infiltrar numa prisão russa para matar um rei do crime que lá está preso, fala russo e tudo, é uma surpresa porque ainda não sabemos que o protagonista tem nacionalidade russa, pelo menos quem não leu a Enciclopédia Marvel como o guionista J.M. DeMatteis em 1987. Nessa introdução, ficamos a saber também que Kraven é forte como dois homens e um haltere com discos largos, que é ágil e atlético ao nível dos efeitos especiais do Demolidor de 2003 e que algumas mortes vão ter jorros de sangue digital mais recente, mas igualmente embaraçosos. No final da missão, Kraven é socorrido por um avião de carga de aspecto militar que volta a usar pelo menos uma vez, mas não se sabe de quem é nem quem o paga, se é dele, um táxi ou um Uber. Aliás, não sabemos qual é a sua fonte de rendimento. Que o pai lhe cortou a mesada há muito tempo não há dúvida.

Entretanto, temos as maquinações de Rhino, um criminoso que quer o negócio daquele que Kraven matou nos primeiros oito minutos e tem também olho no do pai deste. A seu cargo tem um investigador a quem chamam Estrangeiro, porque Hipnotizador era tão óbvio como Rhino, ou talvez Hipno tivesse sido ideal, já que no clímax perseguem Kraven juntos na estepe siberiana, podiam ter descido do jipe e ficado estáticos em pose erecta durante alguns segundos, enquanto na tela aparecia a onomatopeia Rhino e Hipno contra Kraven the Hunter, se o realizador J.C. Chandor fosse fã de Sam Raimi ou de Ang Lee era o que teria feito, mas já não se fazem realizadores como antigamente, até os irmãos Russo perderam o rumo.

Kraven, o Caçador, não é grande caçador. Ou investigador. É, até, constrangedor. Há uma cena em que parece clarividente, na qual tenta parar um grupo de caçadores furtivos que cortam chifres de bisonte na sua propriedade de família na Sibéria, mata todos menos um que escapa para Londres e, assim que este entra no escritório do patrão, encontra Kraven sentado no lugar daquele e o chefe flechado contra o lado de dentro da porta de entrada, na opção de saída. Ou seja, Kraven deixou escapar num veículo rápido um homem que nunca tinha visto, mas deslocou-se mais depressa da Rússia até Inglaterra para interceptá-lo, adivinhando durante o trajecto o local para onde este se dirigia e para quem trabalhava. Mas, algumas cenas mais tarde, não sendo capaz de interceptar os raptores do próprio irmão nas ruas de Londres e deixando-os escapar de helicóptero, o que faz? Visita uma advogada que conhece há dois dias e confia-lhe a missão de encontrar-lhe o irmão, descrevendo o raptor apenas pela cicatriz que tem na cara. Ela promete fazer o seu melhor, o que é, afinal, apenas um telefonema, para que um terceiro o encontre. O nome dela é Calypso, está bem de ver, tão boa investigadora que pouco mais tarde espreita de um balcão no seu escritório de advogados e vê um grupo de homens de fato escuto e gravata a deslocarem-se no andar térreo, o que a leva prontamente a declarar que não têm ar de pertencer ali. Tirando o facto de serem encorpados, nada os faz destacar dos restantes fatos e gravata que povoam o escritório de vários andares. Ou seja, é outra clarividente, melhor do que avó porque até dispensa as cartas para ter premonições.

O Estrangeiro (Hipno só para quem está a ler este texto) também se acha bom detective porque encontra um palito com o veneno de uma planta que só cresce numa região da Sibéria. Isso é prova suficiente de que Kraven mora ao lado das ditas plantas, para fazer-lhes companhia, e que está lá nesse momento, porque é incapaz de viver longe delas mais do que alguns dias de cada vez. Não importa que exista a internet e o comércio mundial, podendo o assassino comprar o veneno na darkweb ou até fazendo deslocações esporádicas à Sibéria para aquisição da planta ou do veneno já destilado. Este raciocínio bacoco seria o equivalente a afirmar que, se o Arqueiro Verde apenas utilizar flechas feitas da madeira de sobreiro, tem de morar no Ribatejo, para estar constantemente a cortar ramos e a afiar flechas. Não pode encomendar a produtores locais à distância.

Rhino tomou o soro de um cientista para endurecer a pele, mas afirma que a dor é tão intolerável que tem de injectar constantemente um antídoto, pelo menos até ao clímax, onde se transforma para uma luta inteira e não sofre qualquer desconforto. Calypso trata do Estrangeiro, porque tem experiência com arco e flecha. Se a flecha é de sobreiro do Ribatejo, permanece uma incógnita. Talvez se esclareça na sequela que o estúdio já fez saber que não produzirá.

Em conclusão, Kraven o Caçador não vai agradar aos fãs do Homem Aranha, que vão torcer o nariz a todas as diferenças desnecessárias e ingratas à personagem desenhada. Não vai agradar aos fãs do bom cinema, porque não é bom cinema, com uma narrativa enrolada e cheia de buracos, personagens que nos são indiferentes, paleio mal aquecido e acção mal ensaiada. Os efeitos especiais são baratuchos e os actores… falemos dos actores.

Aaron Taylor-Johnson, o protagonista, já transitou duas vezes das bandas desenhadas de super-heróis para o grande ecrã, como Kick Ass e Quicksilver, juntando-se assim ao panteão dos actores Ryan Reynolds (que já foi Deadpool, Lanterna Verde e Hannibal King em Blade 3), Chris Evans (Capitão América, Tocha Humana, The Losers e Push), Ben Affleck (Demolidor, Batman e Superman, este último em Hollywoodland, onde interpretou o actor George Reeves, o mais famoso Superman televisivo). Taylor-Johnson, que até já foi assegurado como novo James Bond em notícias que poderão ter sido demasiado apressadas, não é um mau Kraven, tendo em conta que se trata de um personagem novo, que pôde moldar à sua maneira. É convencido, bem disposto e musculado. Não faz papel de parvo, só por isso já ganha ao Tom Hardy. Russell Crowe é o patriarca Kravinoff, gordo, senhoril e com um sotaque indigno do seu talento. Curiosamente, vimo-lo no papel de líder de uma sociedade secreta em A Múmia (2017), outra tentativa falhada de lançamento de uma franchise, e como Zeus, o rei dos Deus do Olimpo, em Thor: Love & Thunder (2022), filme que deitou por terra uma franchise que estava em alta. Talvez um regresso aos underdogs lhe ficasse melhor nas cartas, é perguntar à avó da Calypso. Alessandro Nivola (Rhino) é um veterano que desliza em qualquer papel, ao contrário de Christopher Abbott (Hipno), que parece sempre afectado e aqui é risível, com ou sem gabardina e óculos para camuflar a sua insignificância. Ariana DeBose também passou de um Oscar como actriz secundária em West Side Story (2022) para Calypso e demonstra profissionalismo suficiente para não se lhe apontarem defeitos nem qualidades, assim como Fred Hechinger, como Dimitri (Camaleão nos últimos segundos) ou os actores das analepses.

Quanto aos argumentistas, há três. Dois deles (Matt Holloway e Art Marcum) já se tinham sentado à sombra da mesma bananeira a escrever para Homem de Ferro (2008), filme que teve mais dois argumentistas, e para Punisher: War Zone (2008), Transformers: The Last Knight (2017), Men in Black: International (2019) e Uncharted (2022), todos fracos. Juntou-se-lhes Richard Wenk, outro que está habituado a escrever bocadinhos, tendo assinado um terço dos guiões da trilogia O Equalizador, tratando Denzel Washington como se fosse Steven Seagal, um terço do guião do segundo Jack Reacher (2016) e um terço do de Expendables 2 (2012). Deviam ter sido os primeiros a serem caçados por Kraven.

Por fim, o realizador C.J. Chandor, aqui no seu primeiro filme de super-heróis, cimentou a carreira com três títulos bem classificados, tendo escrito e realizado Margin Call (2011), All is Lost (2013) e A Most Dangerous Year (2014), todos bastante estáticos e introspectivos, ainda que narrativamente tensos, tendo em 2019 tropeçado no seu primeiro filme de acção, Tripla Fronteira, com vários nomes sonantes a não fazerem grande coisa. E grande coisa também não faz de Kraven, o Caçador, que, como já se disse, teve um mau resultado de bilheteira e levou ao estúdio Columbia e à distribuidora Sony a decidirem pausar os seus títulos da Marvel. É mais divertido do que Morbius e menos anedótico do que Madame Web, mas não chega.

Kraven The Hunter 2024

CINEMA & ASSOCIADOS

No comments:

Post a Comment