Há três tipos de musical: aquele em que a dança e a canção estão interligadas à narrativa e são inatas aos personagens, omnipresentes até fora dos números musicais coreografados; um segundo, cuja temática é externa à música mas é por esta dinamizada, porque o género permite às personagens expressarem-se mais abertamente, dando-se a conhecer ou fazendo avançar a narrativa; e um terceiro, em que a estética do musical é martelada num guião que lhe é autónomo e nada lhe acrescenta, pela incoerência, falta de inspiração ou descaramento no aproveitamento do artifício.
Emília Pérez encaixa perfeitamente no logro que constitui o terceiro tipo. É um musical porque os personagens cantam em vez de falar, mas o artificialismo da artimanha é desmistificado pela incongruência da indiscriminada intrusão do canto no discurso. Estes esboços de canção não são da autoria dos argumentistas e nota-se um desfasamento estrutural entre a intencionalidade, o mérito próprio e seu o propósito dentro do filme. Mais do que as letras simplórias, lamenta-se a infatigável repetição de versos, como se a cançonetista pop Camille, que nunca escreveu para um filme ou para o género musical, não soubesse o lugar ou a importância do seu contributo e tenha considerado que o menos é mais, optando, neste caso, pelo muito menos. As canções não desenvolvem a narrativa, nem revelam os personagens. A somar a isso, as melodias são básicas, funcionais e olvidáveis, não se retendo uma única na memória nem se salivando por comprar o disco.
A protagonista começa por cantar o seu desdém pelo patrão e pela profissão que se aproveita dela e não lhe recompensa o mérito, mais tarde cospe o seu ódio aos políticos corruptos durante um jantar de angariação de fundos, mas estes números musicais que se passam dentro da sua cabeça não a impedem de continuar a trabalhar para um cruel e ameaçador traficante (mais tarde ex-traficante), num completo contrassenso que não ajuda a clarificar a sua personalidade, com quem o filme quer que sintamos empatia, mas não age em conformidade com a moralidade e rectidão que apregoa. A viúva do traficante vive com «a opressiva prima do marido» e canta, agressivamente, o quão farta está dessa situação, como se fosse uma menina mimada. Ao menos, toma uma atitude mais tarde, mas não é na canção que delineia o plano, limitando-se a ventilar a sua frustração. Ao todo, há canções sobre violência doméstica, frustração profissional, transexualidade, desaparecimentos em massa, corrupção de políticos, sequestros, há para todos os gostos, mas nada se aproveita.
Comecemos pelo princípio, se não for já tarde para tal. Emília Perez é um filme de Jacques Audiard, baseado num personagem secundário de um capítulo de Ecoute, de Boris Razon. No livro, um traficante muda de sexo para escapar à detecção dos que o querem morto. Audiard achou a situação intrigante, transplantou a trama para o México, por influência de Hollywood, escreveu o guião em francês, Camille compôs as canções em francês e depois os textos foram traduzidos para espanhol, porque é a língua que se fala no México, entregue às actrizes Zoe Saldana (americana com ascendência dominicana e porto-riquenha), Karla Sofía Gascón (espanhola) e Selena Gomez (americana com ascendência italiana e mexicana), cabeças de cartaz. Das três, apenas Gascón tem o espanhol como língua mãe, mas a sua dicção aprendeu-a em Madrid. Dos dois rostos masculinos, Edgar Ramirez, conhecido do público internacional, é venezuelano (faz de mexicano), e Mark Ivanir é israelita (faz de israelita). Apenas Adriana Paz, bastante secundária, é uma actriz mexicana. Voaram todos para França, onde se filmou um falso México. Audiard alterou a motivação do traficante, já não muda de sexo para fugir à morte, mas porque é realmente transexual. Hollywood já produziu suficientes filmes em que os criminosos fazem cirurgias plásticas para mudar de visual só para terem uma nova vida.
Então, o maior traficante do México, Manitas, rapta uma advogada pobre e triste, Rita, e oferece-lhe uma fortuna para que organize, expedita e em segredo, a sua mudança de sexo. Rita aceita e põe-se a caminho, mas logo a seguir à primeira viagem para se inteirar dos métodos cirúrgicos e condições de higiene de uma clínica na Tailândia, os lacaios de Manitas ameaçam-na de andar a perder tempo e dinheiro. Se na Tailândia as cirurgias davam a impressão de ir a um supermercado de luxo, o destino seguinte é Israel, onde, numa clínica muito mais modesta, o cirurgião se mostra pouco inclinado a fazer o seu trabalho, com a objecção de que mudar corpos não muda mentes, mas Rita canta-lhe que, se ele (o médico) visse as coisas que ele (o violento Manitas, incógnito, que ela representa) lhe mostrou (a Rita), o médico tornar-se-ia uma pessoa melhor (talvez ser um traficante violento seja melhor do que cirurgião plástico), e que mudar o corpo muda a alma, e que mudar a alma muda a sociedade. Canta também que nunca se declarará culpada, totalmente a despropósito, apenas porque rima com qualquer coisa antes. Rita age por ambição e medo, mas o seu discurso é cheio de rosas, derrapa na hipocrisia, não há retorno.
Manitas, confirmada a cirurgia, canta a sua esperança numa vida diferente e o que significa para si ver ao espelho uma mulher. «Não me falta luxúria, falta-me desejar», sussurra, e alguns versos adiante «Não desejo o desejo, nem ser desejado». Claramente, não sabe o que quer, nem a cançonetista Camille, temos Emília, seja o que Deus quiser.
Jessi, a mulher de Manitas, é enviada para a Suíça com o filho, enquanto Emília simula a morte de quem deixou de ser, ou nunca foi, conforme a intepretação, a segunda é a mais correcta, mas não é a de Audiard. Jessi chora a sua incompreensão, mas não há empatia cega para com a condescendente e beligerante esposa do mais cruel traficante do México, nem para com as suas lágrimas face a um exílio em riqueza. Rita informa Emília de que Jessi está instalada: «Foi muito difícil, mas estão a salvo.» Como, difícil? Comprou-lhes uma casa e uma passagem de avião. A única dificuldade só poderá advir da sua inexperiência como agente de viagens e imobiliária.
Passam-se quatro anos, Emília volta à superfície, reencontra Rita, ordena-lhe que traga a mulher e os filhos para o México, sente falta deles. Os anos de transição são, assim, ignorados, a preocupação de Audiard não é para com Emília, esta não é a história de uma transexual. Primeiro, não foi ela quem lidou com o tema importantíssimo das cirurgias de reafirmação sexual, fê-lo por interposta pessoa, como se a transição fosse universal, uma serve a todas, aparentemente até as diversas operações foram feitas em simultâneo, para poupar tempo e credibilidade, na realidade tem de recuperar-se de umas para estar pronta para outras, o ser humano é mais frágil do que ele imagina, mesmo aquele que começa homem. De mencionar que Emília, ligada como o Homem Invisível na cama de hospital, maravilha-se ao olhar para entre as pernas, quando esse é outro resultado não imediato: a flor demora meses a desabrochar. No regresso ao México, Emília é apresentada a Jessi e aos filhos como sendo prima de Manitas, mas o filho mais velho diz-lhe que ela cheira exactamente como o pai, o que é outro tiro no pé, já que um dos primeiros efeitos secundários dos tratamentos hormonais é a alteração do odor corporal, pelo que o filho nunca reconheceria o pai pelo cheiro. Karla Sofía Gascón, a actriz que desempenha o papel de Emília, sabe-o com certeza, mas o erro permaneceu no guião.
Emília é surpreendida numa esplanada pelo panfleto de uma mãe que procura o filho desaparecido. Traçando o paralelismo com o amor pelos próprios filhos, decide criar uma associação para encontrar vítimas desaparecidas de cartéis, um flagelo mexicano. Mas Audiard encontrou, uma vez mais, a resistência do público mexicano, uma vez que já tinha declarado, numa entrevista, não ter pesquisado a realidade mexicana antes de escrever o guião, ficando-se pela rama do seu conhecimento geral. Isso, aliado ao facto de nenhuma das actrizes principais ser mexicana ou ter o sotaque adequado, a tradução do guião não respeitar a gramática nem as expressões coloquiais, a usurpação enamorada de realidades embelezadas como o poder dos cartéis e os desaparecimentos em massa e a ideia de que pode endeusar-se um criminoso cruel apenas porque mudou de sexo e teve uma pequena ondulação (não chega para ser um arco) redentora não podia, obviamente, cair bem.
Emília torna-se uma personalidade conhecida no México graças à sua associação, sendo diversas vezes entrevistada, mas nenhum jornal ou cartel decidiu investigá-la a fundo, porque facilmente descobririam que Emília não tem passado. E qualquer repórter com dois dedos de testa concluiria estar perante uma transexual e aprofundaria esse ângulo. Mas, neste universo, não só todas as operações necessárias a uma eficiente reafirmação sexual se fazem de uma vez e os resultados são visíveis ainda com ligaduras, são também duradouros e transformadores ao ponto de ninguém questionar a biologia de Emília. Nunca lhe vemos, sequer, as caixas dos medicamentos que terá de tomar para o resto da vida.
Eventos adiante, Emília é sequestrada e pedem resgate em troca de nove dos seus dedos. Rita, a advogada que não gosta de injustiças, nem de corrupção, mas trabalha para um ex-traficante que manifesta laivos de violência latente, sentindo-se virtuosa e justificada, não pensa duas vezes e reúne um grupo de salvamento a quem distribui metralhadoras saídas do nada. É uma situação que, simplesmente, acontece. Rita, a advogada cuja única ilegalidade com que sabemos ter lidado foi um passaporte falso, subitamente distribui metralhadoras por um grupo disposto a dar o peito às balas por Emília. Próximo do local ermo onde irá processar-se o resgate, ouve-se o anedótico «Apaguem os faróis» por parte do grupo que participa pela calada. Só em filmes parvos se conduz numa estrada às escuras, é realisticamente impraticável, como conduzir de olhos fechados. A seguir, descobre-se que foi Jessi quem raptou Emília, porque esta primeiro lhe mandou espancar o namorado e depois cortou a mesada quando Jessi optou pela independência. Então, Jessi, como herdeira de Manitas, não tinha constituído advogado logo na Suíça, quatro anos antes, para perceber e contestar a forma como a sua herança estava a ser gerida, fazendo queixa ao Banco ou pondo Rita em tribunal? Ou agora, quando o acesso ao dinheiro lhe foi bloqueado? Um sequestro foi realmente a opção escolhida?
O resgate termina em tiroteio e Emília conta a Jessi quem é, enquanto Gustavo, o seu namorado, troca tiros com a equipa de Rita. É mais uma daquelas situações caricatas em que o grupo de salvamento dispara contra o local onde se encontra aquela que querem resgatar com vida, porque é assim que funciona quando os neurónios não funcionam. Jessi e Gustavo fogem pelas traseiras, atirando Emília para a bagageira do carro, e Jessi aponta uma pistola a Gustavo, ameaçando-o, porque é o seu amado marido quem está na bagageira. O seu amado Manitas, que ela traiu com Gustavo cinco anos antes, o mesmo homem que agora é uma mulher, simulou a própria morte sem lhe contar nada, que a enviou para a Suíça e mais tarde trouxe de volta mas não manifestou por ela o menor carinho ou amor, mandou espancar o namorado e lhe cortou o acesso à herança quando saiu de casa. Gustavo tenta tirar-lhe a arma, o carro guina, cai pela ribanceira, os três morrem numa bola de fogo, Rita assiste com uma lágrima no canto do olho, a fita termina com uma procissão cantada em homenagem à Santa Emília dos Desaparecidos, com uma estátua à sua semelhança a servir de estandarte.
Em resumo, o enredo de Emília Pérez mete o pé na poça a cada oportunidade, é um péssimo exemplo de representação transexual (Emília é a personagem titular, mas o enredo não é contado do seu ponto de vista, mas antes do de uma personagem heterossexual, Rita, que se torna o rosto do processo transformativo; Emília fica na sombra enquanto as decisões são tomadas em seu nome e passam-se quatro anos num piscar de olhos, não se assistindo aos primeiros quatro anos de adaptabilidade à nova realidade; não é mencionada a medicação crónica e até se diz que mantém o odor corporal de antes, o que é falso; toda a gente a toma por mulher na sua nova fase, pelo que Emília nunca tem de gerir social e psicologicamente a mudança de sexo e, no final, como todos os personagens com os quais não sabe o que se fazer, morre, para se limpar a realidade da sua existência), é ridículo enquanto musical (nenhum dos actores tem voz para cantar, nem sequer Selena Gomez, que já se intitulou) e incompetente enquanto objecto cinematográfico. Miserável, seja de que ponta que se olhe ou ouça.
Emília Pérez 2024
CINEMA & ASSOCIADOS
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