Gladiador II é uma sequela nos moldes dos saudosos anos 1980 (apesar de Gladiador ser de 2000) e o uso da numeração romana no título é apenas a primeira pista. Nessas décadas longínquas para quem era jovem e agora conta os cabelos brancos ou nem sequer era nascido, as sequelas surgiram para rentabilizar propriedades intelectuais, investindo menos dinheiro e retirando o mérito da equação, apostando que o reconhecimento do nome seria suficiente para vender bilhetes. A ideia era malhar enquanto o ferro estava quente e espremer a galinha dos ovos de ouro até esta deixar de piar. Gladiador encontra o ferro frio, mas tem o sucesso de Top Gun Maverick (2022) quente na memória.
Nesta óptica, Ridley Scott, o realizador/produtor repetente, trocou os três argumentistas do original pelo amigo David Scarpa, com quem já tinha trabalhado em Todo o Dinheiro do Mundo (2017) e Napoleão (2023), este último um drama histórico muito criticado pela falta de rigor factual. Gladiador II não o diz expressamente, mas é como se se passasse numa Roma paralela, num universo “E se...”, rejeitando o real enquadramento da época em troca do mero épico de areia na arena. Basta-lhe que pareça realista, atirando para a misturadora nomes verdadeiros e currículos falsos, distraindo com o coliseu onde soltou macacos infernais, tubarões velozes e rinocerontes monumentais, a intriga envolvente não interessa ao menino Jesus, é impossível dizer se nesta versão já tinha nascido.
Apesar do título suficientemente genérico permitir ultrapassar a complicação de continuar uma história cujo protagonista morreu heroicamente no final, David Scarpa não conseguiu imaginar uma narrativa que não envolvesse o seu fantasma. Russell Crowe não aparece como holograma mas, dezasseis anos volvidos sobre os eventos de Gladiador, ainda é recordado e a sua armadura e espada estão expostas numa câmara na cave do Coliseu de Roma onde ficam as celas que guardam os gladiadores antes dos combates e é mencionado a cada oportunidade. Hanno, o novo protagonista, não tem cinco minutos de tempo de antena até à sua mulher ser morta por romanos invasores e passar de escravo a gladiador, jurando vingança ao general que liderou as tropas. Maximus, o predecessor, era um general romano leal ao imperador Marcus Aurelius que atraía a ira do filho deste, Commodus, o qual pretendia o seu apoio para suceder ao trono antes do tempo. Irritado pela rejeição, Commodus ordenava a morte de Maximus, da sua mulher e filho. Encontrado às portas da morte, era feito escravo, ascendia a gladiador e regressava a Roma para vingar-se do imperador que lhe matara a família e o verdadeiro imperador. Também aqui se vê que a sequela é económica, porque Hanno é um agricultor sem filho para dar à morte, o alvo da sua vingança não é um imperador mas um general que, vimos a descobrir, sonha com a reforma nos braços da mulher de quem está farto de estar longe, são os novos imperadores que não o deixam depor as armas e passar ao anonimato da vida na reforma porque, aparentemente, não há mais generais no império romano. E, sim, há agora dois imperadores em vez de um, são os gémeos Geta e Caracalla, parecem os novos vilões mas não valem metade do errático Commodus. Vem, para o final, outro vilão tapar o buraco com a cabeça de um deles, mas é muito pouco e muito tarde.
Seguindo o esboço do original, avança-se com retoques que testam a credulidade e exasperam a paciência, tenta-se uma surpresa que é traída pelas pistas muito antes da revelação, Hanno é Lucius, quem não tiver visto o filme não saberá o que isto significa, mais será discutido que é preferível nestas linhas não lerem antes de o verem.
O novo protagonista reprisa grande parte das motivações e ações do predecessor, mas onde o original revitalizou a moda das sandálias em Hollywood, Gladiador II não quis revolucionar o modelo, preferindo entregar materiais de qualidade inferior a um artífice que já mal vê o buraco da agulha onde enfia a linha. Como numa qualquer sequela de série B que se preza, o filho segue as pisadas do pai, mas falta a Paul Mescal o carisma de Russell Crowe, que comandava a tela com o seu olhar sofredor num rosto esculpido em pedra, cujos músculos pareciam mais definidos e impressionantes do que efectivamente eram, pela mera imponência do seu porte e pela gravidade da sua voz. Mescal vem do cinema independente, onde brilha em papeis introspetivos, etéreos e banais, para líder dos gladiadores falta-lhe a convicção, mas não só, falta-lhe emular o que se elogiou em Crowe. Mas o mal é, infelizmente, geral. Para rimar com Paul Mescal, temos Pedro Pascal, um actor em estado de graça há demasiado tempo, mas disso nos queixaremos com propriedade quando estrear O Quarteto Fantástico: Primeiros Passos (2025). O seu papel é de relevo intermédio e como tal se comporta, fará um pouco melhor do que Denzel Washington, que na geriatria se tornou herói de acção, Equalizador só de nome mas já com trilogia feita, ri-se por isso de Gladiador, duas décadas para esta vergonha. Connie Nielsen e Derek Jacobi são as únicas caras que transitam do primeiro filme, bons actores com migalhas, as de Jacobi nem alimentam um pombo. Nielsen lá teve melhor sorte, sorte nossa, o herói tinha de ser filho de alguém. Joseph Quinn e Fred Hechlinger são os pindéricos imperadores e este adjetivo arruma-os.
Em suma, lamenta-se a falta de originalidade do guião, a falta de empenho do realizador, a falta de carisma dos actores, a falta de tempo na arena, a falta de subtileza na conspiração. É um filme que se caracteriza pelo que lhe falta, pelo muito que lhe faz falta.
Resta gozar com situações concretas notadas pelo ilustre crítico que se vos dirige, e que, portanto, não se irão prender com inconsistências de ordem geográfica ou histórica, que existem de sobejo, mas não se reproduzirão, outros saberão do que falam, eu só sei do que dizem. Fiquemo-nos pelo seguinte: De que serve uma mulher usar uma armadura que lhe desenha os seios, mas não protege de uma única seta? E essa seta ser disparada de um nível inferior mas, em vez de alojar-se com uma significativa inclinação na armadura (oblíqua à mesma), quando o marido se debruça sobre ela, a seta pende num ângulo recto em relação ao tronco da vítima, como se esta tivesse sido alvejada de frente? Estas são questões que ficam da primeira batalha do filme, a qual é surpreendentemente curta, se não contarmos com a aproximação dos barcos romanos à fortaleza costeira. A abordagem é breve, servindo exclusivamente para matar a mulher do herói e derrubá-lo com uma cacetada, ele não é grande guerreiro e a armadura dela é de papel.
Hanno é feito escravo e conduzido para Roma, uma sorte ser para onde queria ir. A meio do caminho, é adquirido por um produtor de entretenimento que assiste a uma prova de gladiadores numa arena e o acha interessante, apesar de Hanno se ter visto em dificuldades para sobreviver aos babuínos do inferno e haver outro gladiador com seis abdominais e zero arranhões.
O primeiro teste de Hanno é contra o capataz de Macrinus, que empunha um par de luvas revestidas de dezenas de espigões de ferro, com as quais lhe assenta dois socos na cara e um nas costelas antes do Hanno dar a volta ao jogo. Só que, por essa altura, deveria ter a cara totalmente retalhada e as costelas partidas, o que não acontece nesta fantasia porque nada é realista.
Primeira luta no Coliseu, logo a seguir ao rinoceronte ser derrotado por um pouco de poeira e uma parede, Hanno dá duas cacetadas com a ponta da pega da espada e o adversário nem reage, como se aquilo fosse um dildo de borracha, quando deveria tê-lo derrotado logo ali. Depois de decepá-lo, toda a galeria grita o nome de Hanno, quando é a primeira vez que o veem e ele deveria ser um gladiador anónimo, um mero escravo do ultramar recém chegado e sem carreira, mas toda a gente sabe o nome dele.
Ao terceiro dia, inundaram o coliseu, com água não se sabe vinda de onde, suficientemente profunda para uma batalha naval com tubarões a morderem quem caía das barcaças, e ao quarto dia o recinto estava novamente seco e com o chão em terra seca. Fica a sensação de que os eventos ocorrem em dias sucessivos e a câmara sobrevoa Roma, por isso não se sabe como pode um dia haver rinocerontes e no seguinte embarcações, toneladas de água e tubarões que ninguém sabe onde se armazenam. A menos que sejam reencaminhados para as cozinhas imperiais ou o mercado municipal.
O general de quem Hanno queria vingar-se pela morte da esposa é, afinal, o marido da mãe, nenhum deles fica satisfeito com a descoberta, mas o primeiro compromete-se em soltar o segundo, infelizmente é detido por tropas fieis a Roma que assassinam toda a sua guarda mas o poupam milagrosamente, apesar de todos seguirem pelas sombras e com mantos sobre a cabeça, a camuflarem as suas identidades, o general tanto podia ser quem era como o do lado, para quem observasse de longe.
Lamento pelo Acacius, não consegui ver o homem, diz Hanno à mãe, sobre o homem que mandou matar-lhe a esposa e de quem queria vingar-se mas poupou na arena, apenas para ver cravejado de flechas à sua frente.
Geta e Caracalla sentem-se ameaçados pela população que fica em alvoroço porque um general foi morto na arena. Erguem os punhos em frente ao palácio e ateia um fogo circunscrito. Os imperadores sentem-se ameaçados, mas não têm um único guarda à vista. Macrinus berra conspirações a um imperador que o outro é demasiado surdo para ouvir e ambos cortam o pescoço ao imperador que devia ter ouvido melhor. De seguida, Geta vai discursar ao Senado e o assassinato de Caracalla nem sequer é mencionado ou questionado. A cabeça anedótica que se aguenta sozinha como uma escultura é um momento insólito que ficará para a história do Cinema, senão de Roma, tão realista como a entrega ao macaco de estimação do poder deixado vago pelo irmão.
O exército de Acacius está às portas e tem cinco mil homens, mas nós temos seis mil. Como é que é possível contar pelos dedos cinco mil soldados que se aproximam em tempo real? E isto dito pelo chefe da guarda pretoriana, que acaba de ser abalroada por uma turba de gladiadores na arena à sua frente, mas que ele ignora quando devia ser a sua prioridade e desconhece a motivação do exército que se aproxima, uma vez que Acacius está morto e não pode liderá-lo.
Maximus tinha um objetivo, matar o responsável pela morte da família, e cumpre esse objetivo no final. Hanno quer vingar-se do general que responsabiliza pela morte da esposa (com uma flecha no meio do peito), mas muda de ideias quando descobre que este é o marido da mãe. A mãe é assassinada por Macrinus (com uma flecha no meio do peito) e Hanno, agora Lucius, vai atrás dele, mas discursa apenas sobre Deuses e Roma livre, nada sobre vingança e justiça. A luta final é ridícula, tendo em conta a diferença de idades e o sedentarismo de Macrinus, mas é este quem golpeia e derruba Lucius, tratando-o como Steven Seagal ou lembrando-se de que, noutra encarnação, é o Equalizador. A seguir, comentem-se os consecutivos impactos directos de cima com a espada afiada que são rechaçados pela armadura de couro (e não pelas partes de metal) da armadura de Maximus, usada por Lucius, quando já ficou provado em inúmeros momentos anteriores que as armaduras são perfuradas à primeira por flechas e espadas, e esta armadura nem é beliscada. Lucius ganha e o Equalizador fica-se por três filmes e um spinoff. É impossível dizer se, desta perspectiva, ficamos a ganhar ou a perder.
The Gladiator II
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